segunda-feira, 10 de setembro de 2012

A medicalização da vida

Este é o termo usado pelo psiquiatra Rondon de Castro para falar sobre o consumo cada vez mais excessivo de medicamentos para resolver problemas emocionais e que requerem mudanças de hábitos

RONDON DE CASTRO, psiquiatra


Um medicamento para resolver cada problema. Este é, na opinião do psiquiatra Rondon de Castro, o principal fator que está levando a uma medicalização da população em níveis mundiais. Pós-graduado em Toxicomanias pela Universidade René Descartes e Centro Médico Marmottan, em Paris, Rondon diz que a medicina não sabe ainda a razão pela qual algumas pessoas se tornam dependentes e outras não ao consumir os mesmos medicamentos. “É possível que haja causas biológicas, mas também psicológicas e culturais. Isso acontece com bebidas alcoólicas e também com outras drogas. O termo 'dependência química' é, pois, inadequado porque faz pensar apenas em causas biológicas, o que não está provado”, frisa, lembrando que até mesmo a questão sobre a dependência ser ou não hereditária permanece sem confirmação científica.

O psiquiatra ressalta que, no mundo inteiro o fenômeno da “medicalização da vida” vem crescendo rapidamente nas últimas décadas. “Cada vez mais uma variedade de problemas tende a ser vista como doença e as doenças são cada vez mais medicadas. As mudanças de hábitos para o controle da pressão, do peso, do estresse, da insônia têm tido cada vez menos importância, porque exigem maior esforço do médico e do paciente. Buscando sempre o menor esforço, médicos e pacientes se acomodam na simples busca de um medicamento que resolva tudo rápido e com o mínimo de trabalho”, critica.

Ele informa que mais de 1/6 da população mundial, o que representa mais de 1 bilhão de pessoas, usa medicação psicotrópica para depressão, estresse, insônia, para emagrecer, etc. Em países como o Brasil, com um número incontável de farmácias, facilidades para se comprar sem receita, propagandas 24 horas por dia de todo tipo de medicamento e população mal esclarecida, o consumo tende a ser bem maior, afirma. Segundo Rondon, a dependência dos medicamentos pode chegar a níveis tão alarmantes quanto a do crack ou do álcool. “Há senhoras de 50, 60 anos, que usam os famosos 'calmantes de faixa preta' há tanto tempo que apresentam níveis de comprometimento do raciocínio e da memória semelhantes aos de alcoolistas antigos. A dependência dos inibidores de apetite é assustadora”, comenta.

Os medicamentos com maior risco de provocar dependência são os psicotrópicos. Conforme o médico, isso acontece devido a sua capacidade de provocar alterações no cérebro, assim como acontece quando se usa bebida alcoólica, cocaína, maconha e outras drogas. “Essas alterações geralmente produzem alívio temporário de algum mal-estar psicológico como a ansiedade, o medo, a inibição, a angústia, a tristeza e a insônia”, detalha, complementando que, dos psicotrópicos, os de maior risco são os “calmantes de faixa preta”, por causa de sua capacidade de promover um alívio dos sintomas em questão de minutos.

De acordo com ele, é muito comum o médico prescrever para que o paciente tome 1 comprimido de calmante todas as noites às 21 horas. Só que a pessoa sai do consultório decidida a não tomar todos os dias com medo de ficar dependente. Ela então decide que sarará “só em caso de necessidade” acreditando que, dessa forma, o risco da dependência diminui. “É comum também o paciente ouvir do próprio médico, ao entregar a receita, que é para usar o medicamento 'se a senhora estiver nervosa' ou 'se começar a ter crise'. Nos dois casos acontecerá a automedicação, que é a primeira porta para se chegar à dependência”, avisa. Outros que costumam levar à dependência são aqueles em que os efeitos são demorados, como os antidepressivos que podem levar vários dias para começarem a atuar. Já os inibidores de apetite, avisa Rondon, são particularmente perigosos em função de sua capacidade de adaptação ao organismo, forçando o usuário a aumentar muito rapidamente as doses para obter efeito semelhante.

Tratamentos
Rondon de Castro assegura que, ficar livre de uma dependência, do ponto de vista físico, não é tão complicado quanto se imagina. “O problema é a insegurança gerada pela possibilidade de os sintomas voltarem com a interrupção do medicamento. As pessoas dependentes geralmente têm baixíssima tolerância aos incômodos, ainda mais depois que conhecem uma substância capaz de proporcionar um alívio tão rápido”, avalia. Para tratar a pessoa dependente de medicamentos, o psiquiatra diz que será necessário buscar alternativas para o alívio dos sintomas, o que pode ser feito com o uso de medicamentos menos agressivos temporariamente e com o auxílio psicológico para tentar compreender as origens dos sintomas, mudanças em alguns hábitos de vida e mudanças na própria vida.

Para ele, a prevenção é um tema sempre evitado por forçar necessariamente as discussões em direção à necessidade de revermos o modelo de sociedade que estamos construindo. “Nossas cidades iluminadas e barulhentas podem ser um alento à angústia do isolamento de quem vivia no campo, mas que agora não dorme, a não ser às custas de um calmante; a competitividade insana no mundo do trabalho, gerando a ansiedade, o desemprego e o desespero, levam inevitavelmente às farmácias, quando não aos bares ou aos becos; a violência descabida gerando o medo e o medo do medo também não está sendo suportada com os recursos próprios do cérebro. Quando finalmente adoecemos, nos juntamos a uma multidão na sala de espera de um médico apressado pronto para, em poucos minutos, nos proporcionar o alívio que há tempos não experimentávamos. Aí, adiamos os problemas até a próxima dose do medicamento e vamos levando...”, filosofa.

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