“Há que endurecer, mas sem perder a ternura jamais”. A frase de Che Guevara resume bem a vida e a essência da delegada de polícia e professora Laudelina Inácio da Silva. Endurecer não no sentido de tornar-se cético e sem sentimentos, mas de manter a firmeza necessária para traçar metas grandiosas e alcançá-las de forma digna e honesta. A ternura, neste caso, também não recai sobre uma postura melosa e permissiva. Trata-se de olhar cada ser humano de forma integral, de percebê-lo como alguém que merece ter seus direitos e sua dignidade respeitados em qualquer situação. Conciliar uma conduta reta e competente à defesa incansável dos direitos humanos não é tarefa fácil. Quando quem está à frente dessa missão é uma mulher, a jornada parece ainda mais árdua. E não foram poucos os obstáculos superados por Laudelina para obter reconhecimento em sua carreira jurídica. Sua trajetória profissional foi construída paralelamente ao trabalho doméstico, à missão de criar quatro filhos. Por mais de 15 anos, ela conseguiu conciliar trabalhos distintos, que proporcionassem à família, da qual foi pai e mãe, o necessário para o desenvolvimento pessoal e educacional. Tanto esforço foi recompensado. Mestre em Ciências Penais pela Universidade Federal de Goiás e doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pela UMSA, Laudelina é delegada da Polícia Civil de Goiás desde 1993 e coordenadora pedagógica do curso de Direito da UNIP - Campus Goiânia. Seus quatro filhos (Leandra — advogada; Carlos Júnior, economista; Cacildo, publicitário; e Letícia, psicóloga) também são portadores de especializações, mestrados e MBA em suas áreas de atuação, além de administrarem na Região Metropolitana a Rede LFG de Ensino Telepresencial, um projeto pioneiro no Brasil que visa a democratização do ensino jurídico.
Nesta entrevista, Laudelina Inácio, que considera-se “uma profissional da paixão”, conta um pouco de sua história, analisa as relações interpessoais em um mundo marcado pelo consumismo e a situação feminina perante a sociedade e ao mercado de trabalho, principalmente no que diz respeito à carreira jurídica.
Nesta entrevista, Laudelina Inácio, que considera-se “uma profissional da paixão”, conta um pouco de sua história, analisa as relações interpessoais em um mundo marcado pelo consumismo e a situação feminina perante a sociedade e ao mercado de trabalho, principalmente no que diz respeito à carreira jurídica.
Como surgiu sua paixão pelo direito?
Nasci em Buriti Alegre e tenho muito orgulho de ter sido incentivada por meus pais, Cacildo Inácio da Silva (in memorian) e Leila Sahb Inácio da Silva, a desenvolver o gosto pelos estudos e o amor ao trabalho. Na verdade, minha paixão pelo direito acompanha-me desde a infância, quando ouvia do educador Moacir Monclark Brandão assertivas como “seu direito começa quando termina o do outro”,“ninguém é melhor que o outro” e “se alguém faz alguma coisa, qualquer outro também poderá fazê-lo”. Estes ensinamentos sempre me acompanharam. É preciso ressaltar que a maioria das mulheres da minha geração era de origem rural e foi educada para ser professora. Por isso, fiz o curso normal no Instituto Maria Auxiliadora. Logo depois, obtive uma vitória: consegui autorização paterna para cursar Contabilidade no período noturno, no Colégio Dom Marcos de Noronha. Neste curso, tive o privilégio de ser aluna do professor Nion Albernaz, que despertou o meu interesse pela política classista, bem como pela luta em prol da cidadania e dos direitos humanos. Concluí o curso de Direito pela Universidade Católica, hoje PUC, e o meu primeiro contato com o mundo jurídico foi por meio da advocacia dativa. Acredito que todo bacharel de Direito deveria exercer a advocacia antes de prestar concurso público. A advocacia nos auxilia a interpretar as legislações e a entender as lides forenses. Atuei nas áreas trabalhistas e criminais, realizando dezenas de júris em defesas de réus carentes de recursos financeiros. Em meados da década de 80, concluí meu primeiro curso de especialização em Ciências Penais, pela UCG, e adentrei para o magistério superior, lecionando na Faculdade Anhanguera, na Faculdade de Anicuns, na própria Católica e na Faculdade de Direito de Itu (SP). Em minha opinião, ser professora é um vício, vai além dos vencimentos, é acreditar em mudanças. Acho que é nosso dever passar adiante aquilo que aprendemos.
E como a advogada e professora transformou-se em delegada?
Ser delegada de polícia é ser agente transformador da miséria moral do ser humano. Investigar é um sacerdócio. Na verdade, a razão que levou-me a deixar a advocacia para entrar para a Polícia Civil, por meio de concurso público, foi justamente minha crença na convivência entre direitos humanos e segurança pública, o que, à época soava como utopia. A ação da polícia era considerada arbitrária, mas meu desejo de ver o outro lado da moeda falou mais alto. Minha decisão causou um rebuliço na família, no círculo de amigos e despertou até mesmo o interesse da imprensa, pois todos consideraram a minha escolha bastante radical. Entretanto, a meu ver, era apenas uma evolução natural de quem não estava satisfeita com o sistema criminal vigente. Meu envolvimento com o projeto da OAB “Sociedade Pede Justiça” mostrou-me a possibilidade de introduzir na segurança pública os princípios e o compromisso com a cidadania e com os direitos humanos. E, para minha surpresa, encontrei dezenas de policiais amantes da cidadania. Ser delegada de polícia é uma experiência muito rica em minha vida.
E a adaptação frente à nova profissão?
A mulher delegada da minha geração batalhou muito por um lugar ao sol. Abriu portas, lutou muito e foi pouco reconhecida. Principalmente no meu caso, que era uma delegada oriunda dos Direitos Humanos e, ainda por cima, professora. Não bastava ser uma boa delegada, tinha de ser excelente, pois o ambiente policial era totalmente dominado pelos homens. No início, fui alvo de preconceitos, mais pelo fato de ser professora universitária do que por uma questão de gênero. Minhas promoções eram sempre tardias, levando em conta que eu era portadora de títulos, os quais jamais foram reconhecidos pelo Conselho Superior da Polícia. Sempre recorri de minhas avaliações em vão e soube que, muitas vezes, esses recursos serviram de chacotas entre os colegas. No entanto, para mim, o mais importante na carreira policial é a sensação do dever retamente cumprido. Não há promoção que se compare a um abraço espontâneo de uma criança vitimizada ou de “um muito obrigada, doutora”, dito pela mãe de um acusado que foi tratado com dignidade.
Qual a sua visão sobre a posição da mulher na carreira jurídica brasileira?
Com a ascensão de uma mulher ao cargo máximo do Poder Executivo e de diversas ministras aos tribunais superiores, a mulher brasileira ganhou fôlego e vivencia uma situação mais confortável em todas as profissões. Em relação às carreiras jurídicas, no Estado de Goiás pode-se afirmar que a mulher já foi alçada aos cargos de chefia na Secretaria de Segurança Pública, na Diretoria Geral da Polícia Civil, na Procuradoria Geral do Estado e na Procuradoria Geral de Justiça. Ou seja, há um empoderamento da mulher dentro das carreiras jurídicas, um avanço significativo, mas existem conquistas a serem alcançadas como a Presidência do Tribunal de Justiça e da OAB-GO. Atualmente, ocupo a Secretaria Nacional da Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica, e é contínuo o debate sobre a participação das mulheres de carreira jurídica na formação dos profissionais do direito. Afinal, a universidade é o lugar de onde saem os juízes, os promotores, os consultores jurídicos, os procuradores, os delegados e quase 60% dos políticos. Sabemos que o bom desempenho de um cargo público não decorre apenas do conhecimento específico de seus integrantes. O comando da vida social do país exige dos profissionais profundo e aprimoramento em cidadania, humanidade e, principalmente, em sensibilidade no trato com as pessoas.
A que fatores a senhora atribuiria tantos conflitos entre gêneros?
Em que pese o advento da Lei Maria da Penha, o Brasil vive praticamente uma guerra social com a questão da violência doméstica sob vários ângulos: da segurança/insegurança, da ótica da repressão /prevenção, do viés do atendimento, pois nenhum dos modelos de gestão governamental e econômico adotado se mostrou eficaz no cumprimento da legislação vigente. A existência das leis não garante a sua aplicabilidade e efetivação concreta. Enquanto houver uma mulher sendo humilhada ou violentada, a nossa luta continuará pela conscientização sobre a importância dos seres humanos serem tratados com igualdade. A questão de gênero não deve ser reduzida apenas à relação homem-mulher. Ela é bem mais ampla, é uma desigualdade que assola toda a humanidade. A verdade é que o homem não estava preparado para a ascensão profissional da mulher, o que gerou conflitos e uma crescente onda de separações no final do século passado. O homem não soube compartilhar o poder de ser o provedor da família. Não entendeu que a mulher jamais almejou usurpar o seu papel. Apenas desejou um lugar de destaque como profissional no seio familiar. A falta de tolerância acarreta a violência doméstica e a desestruturação da família. A porta de entrada do jovem no mundo das drogas é o desequilíbrio familiar. Oportuno salientar que atualmente existem vários modelos de núcleo familiar, mas o que verdadeiramente importa é o respeito mútuo entre os seus integrantes e a construção de princípios morais e éticos. A educação é o caminho para se atingir um mundo menos conflituoso. O momento é de trocarmos a intolerância pela harmonia, as inócuas disputas corporativistas pelo entendimento, pela solidariedade, pela fraternidade e pelo trabalho. A instalação efetiva da Defensoria Pública em nosso Estado não é essencial apenas para essa ou aquela instituição, é essencial para a cidadania.
Revista da Academia de Direito, março de 2012.
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