Por Joaquim Caetano de Almeida Netto, professor emérito da Universidade Federal de Goiás
Embora em pequeno número, três livros de autores goianos são ricos em informações sobre cuidados com a saúde e o perfil dos médicos que atuaram no período imperial, Capitania e Província de Goiás. Pretendemos com a presente súmula ensejar uma visão sumária, sequenciada e abrangente deste interessante tema, em especial aos alunos da graduação e da residência em medicina.
A área territorial do Estado de Goiás pertencia à Capitania de São Paulo e incluía o atual Triângulo Mineiro até 1749, quando foi desmembrada passando a constituir a Capitania de Goiás até a proclamação da Independência do Brasil, quando passou a ser a Província de Goiás. Longe da área litorânea então a mais desenvolvida, a Capitania de Goiás, embora rica em ouro e em pedras preciosas, era praticamente desassistida pelo Governo Imperial nos cuidados com saúde a não ser pela atuação dos poucos licenciados como boticários, físicos e cirurgiões remunerados para prestar assistência ao pessoal do governo, aos militares e aos abastados, estes mediante aquisição de cotas dos Hospitais Militares, um em Vila Boa e outro ao norte da Província, a segunda área aurífera mais explorada.
Os recursos terapêuticos eram empíricos e ineficazes a não ser a infusão de casca da Quina no tratamento da febre palustre ou sezão, hoje Malária, descoberta em meados do século XVII por um monge espanhol, missionário no Peru. Assim, os cuidados com a saúde fundamentavam-se em crenças, costumes, tradições e rituais religiosos trazidos pelos colonizadores portugueses e africanos, a cargo de benzedores, curandeiros e parteiras que, pelo seu carisma, interagiam com a mente dos enfermos aliviando seu sofrimento ou mesmo curando algumas enfermidades psicossomáticas.
A precariedade da assistência a saúde nessa época é bem ilustrada pelo relatório do naturalista Augusto de Saint Hilaire, “Viagens às nascentes do Rio São Francisco e pela Província de Goyaz: por ocasião de minha viajem em 1819 não havia em Villa Boa um só médico; não existia outro cirurgião além do da Companhia de Dragões que reunia, uma incúria extrema e a mais completa ignorância. Os mercadores também conhecidos como mascates vendiam fazendas, quinquilharias e alguns remédios que recebiam do Rio de Janeiro, mas ninguém possuía a menor ideia de Pharmácia”.
Os colonizadores portugueses consideravam saudável a área ao sul do espigão divisor de águas e como insalubre ao norte, principalmente as áreas pantanosas dos afluentes do rio Araguaia, onde a febre palustre dizimava a população de escravos e nativos em atividades de garimpo.
Contrapondo a esses senões, registros do Rio de Janeiro e Lisboa apontavam dois importantes locais de cura, Caldas Novas para as doenças de pele e Formosa para as doenças respiratórias, o que teria dado início as discussões sobre a mudança da Capital Federal do Rio de janeiro para o Planalto Central.
Neste rudimentar cenário os cuidados com a saúde só começaram a melhorar com o Hospital de Caridade São Pedro de Alcântara da antiga Vila Boa criado em 1825 que, só após implantado e em funcionamento, passou a contar com modesta ajuda governamental para cuidar dos presos, mendigos, imigrantes pobres, do cemitério e da difusão de conhecimentos sanitários básicos, de higiene ambiental e pessoal.
A partir de então, os parcos conhecimentos científicos em prática nas regiões desenvolvidas do País começaram a chegar a Goiás e o Hospital de Caridade São Pedro de Alcântara passou a ser o embrião da assistência a saúde de cunho científico, rompendo o total empirismo da época, mediante o ensino e a prática de Higiene Individual e Sanitária que passaram a fazer parte do ensino fundamental e da formação de professoras na Escola Normal de Vila Boa.
Embora alguns avanços científicos em saúde ocorridos no início da Província de Goiás como a prevenção da Varíola, a doença devastadora da época, pela inoculação cutânea de pus de mastite bovina, descrita por Jenner em I773, e da prática da higiene hospitalar que aumentou o êxito das cirurgias da época e disponibilidade do Dicionário de Medicina Popular e das Ciências Acessórias, o efeito do tratamento dependia do carisma dos envolvidos e o acerto no diagnóstico da capacidade de observação e intuição dos licenciados, por não se dispor de qualquer apoio laboratorial.
Assim o impacto na saúde populacional era enorme, como evidencia a elevada mortalidade proporcional referida em relatório do Hospital de Caridade São Pedro de Alcântara, em que a metade dos óbitos na Capital da Província eram de causa infecciosa e 38% eram crianças.
Apesar da referência a um médico que residira em Vila Boa este não esteve na mesma, conforme: “Existe na cidade Alexandre José Souto doutor em medicina pela Universidade de Montepellier o qual vive pela advocacia mais que pela medicina”, Vicente Moretti Foggia, um fugitivo político do Governo Italiano que havia concluído o quinto ano de medicina ao aportar no Rio de Janeiro, receoso de ser identificado na corte embrenhou-se para interior do País, chegando a Vila Boa em 1831 ocupando-se de atividades de garimpo de ouro com cinco outros fugitivos do governo italiano.
Como não obtiveram sucesso, Moretti Foggia passou a se dedicar a medicina no recém criado Hospital de Caridade São Pedro de Alcântara, contratado como Médico Licenciado pelo Governo Imperial em 1945 ”pela sua competência e dedicação”, tendo permanecido na antiga capital pelo resto de sua vida dedicando-se também a educação como professor, o que mostra seu autêntico caráter humanístico que o levou a ser considerado benfeitor da antiga Capital.
O segundo médico que atuou na antiga capital foi Sabino da Rocha Vieira, desterrado pelo Governo da Província da Bahia como chefe da Sabinada, considerado médico habilíssimo e de diagnóstico preciso mesmo sendo uma pessoa de ”maus tratos” o que foi confirmado pela sua oposição agressiva ao governo e pelo fato de ter contraído, em Vila Boa, matrimônio com a filha de um nobre português, apesar de casado e de ter abandonado a esposa ao fugir para a Província de Goiás.
Em desagrado do governo da província, da família de sua esposa e de boa parte da população, o doutor Sabino foi deportado para a Província de Mato Grosso algemado, onde foi mantido preso durante algum tempo vindo a fugir de forma mirabolante para uma fazenda no pantanal a algumas léguas de Cuiabá ou para o interior da província de Goiás ou ainda para o sertão boliviano, segundo relatos controversos da época.
Seguiu-se a atuação de Theodoro Rodrigues e Morais, o primeiro médico nascido em Goiás, além de exercer a medicina atuou na política como Vice Governador, Governador em exercício e Professor do Lyceu até o falecimento de sua esposa quando desgostoso transferiu-se para o Rio de Janeiro como médico Militar, vindo a falecer em 1897.
Dr. Francisco e Paula Alvelos, Cirurgião do Corpo de Saúde do Exército formado na Bahia veio para Goyaz em 1885 para atuar no Hospital de Caridade São Pedro de Alcântara, onde trabalhou por pouco tempo sendo transferido para o Rio Grande do Sul logo após a proclamação da República, por motivos políticos.
O segundo médico goiano que atuou em Vila Boa foi o Dr. José Netto de Campos Carneiro formado pela Faculdade de Medicina da Bahia que, após a aprovação de tese Mal de Brigth apresentada a comissão doutoral daquela faculdade, conseguiu sua impressão em Paris o que ensejou oportunidade para que aperfeiçoasse seus estudo na Capital da França, então um dos maiores centros da medicina científica.
Vindo para Vila Boa após alguns anos na Europa, clinicou por mais de 30 anos tornando-se o sucessor natural de Vicente Moretti Foggia pelos benefícios prestados aos pobres e aos doentes de Vila Boa e seu substituto no Hospital São Pedro de Alcântara.
Apesar de considerado médico de poucas palavras, o Dr. Netto, atendia com especial carinho a população carente, o que lhe ensejou o cognome de Pai do Pobres e, apesar de nunca ter se dedicado a política, foi eleito varias vezes Intendente Municipal, oportunidade em que prestou relevantes serviços, tanto no interesse da saúde, da higiene ambiental como da administração pública como a construção do cemitério, a canalização da água do ribeirão João Leite e construção de um chafariz para fornecer água limpa a população local, a construção do Mercado Municipal para desenvolvimento do comércio e a construção do prédio da Prefeitura.
Ao falecer tinha doado todos os seus bens, a residência para sede do Orfanato São José, a fazenda e gado para alimentação dos órfãos, outros bens e valores para viabilizar a construção do Asilo São Vicente de Paula destinado a abrigar incapazes e inválidos, seu então moderno material cirúrgico ao Hospital São Pedro de Alcântara e seus livros ao Gabinete Literário Goiano vindo, à semelhança de. Moretti Foggia, a ser considerado benfeitor da Cidade de Goiás.
PUBLICAÇÕES CONSULTADAS
1 - Araújo e Silva, N.R. 1 - Educação e Saúde em Goiás: promessas e mudanças. In Saúde e doenças em Goiás, 1999.
2 - Campos, F. I. Serviço de Higiene, origem da Saúde Pública em Goiás. In Saúde e Doenças em Goiás, 1999.
3 - Carasch, M. C. História das doenças e dos cuidados médicos na Capitania de Goiás. In Saúde e doenças em Goiás, 1999.
4 - Carvalho Bueno, Jerônimo. História da medicina em Goiás, 1979.
5 - Castelo Branco, Lena F. F. Saúde e Doenças em Goiás. A medicina possível, 1999.
6 – Ferreira Salles, G. V. Saúde e doenças em Goiás – 1826 a 1930.
7 - Godinho, I. R. Médicos e medicina em Goiás do século XVIII aos dias atuais, 2004.
8 - Rezende, J. M. Prefácio do Livro Saúde e doenças em Goiás.
Revista da Academia Goiana de Medicina, março de 2012.
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