quinta-feira, 19 de julho de 2012

Como enfrentar os problemas dos usuários do crack

LEONARDO MARIANO REIS, presidente do Sindicato dos Médicos do Estado de Goiás (Simego)
RONDON DE CASTRO, psiquiatra do Centro de Atenção Psicossocial

MARCELO CELESTINO, coordenador do Departamento CAO Saúde do Ministério Público de Goiás
Psiquiatra do Centro de Atenção Psicossocial
  
Para apontar soluções foram ouvidos coordenadores de entidades de saúde e um psiquiatra que lida diariamente com dependentes de drogas
 
Em meados dos anos 80 surgiu uma nova droga, o crack, que, devido ao seu baixo custo e “barato” rápido e intenso, logo ganhou popularidade entre os usuários, especialmente nas áreas urbanas mais pobres. Segundo um estudo do Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp), em Goiás existem atualmente cerca de 300 mil de usuários de drogas ilícitas. As mais consumidas são, pela ordem, a maconha e a cocaína e o crack, sendo que esta última tem um poder altamente destrutivo.

O presidente da Associação Médica de Goiás (AMG), Rui Gilberto Ferreira, considera o crack um problema de saúde pública dos mais relevantes. “Nos últimos seis anos os dados apontam para um aumento de 150% dos usuários e a estimativa é de que exista 50 mil dependentes em Goiás”, afirma. Para o presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de Goiás (Cremego), Salomão Rodrigues, que é também psiquiatra, o uso do crack, assim como de outras drogas, inclusive do álcool, constitui em grave problema de saúde pública que o governo brasileiro tem negligenciado. “No Brasil as políticas de enfrentamento das dependências químicas são desarmônicas, tímidas e equivocadas. O problema é enfocado apenas como social e são negligenciados os aspectos médicos. Um infinidade de tragédias e mortes tem ocorrido”, declara.

Já o presidente do Sindicato dos Médicos do Estado de Goiás (Simego) Leonardo Mariano Reis acredita que, antes de ser um problema de saúde pública, o crack é um problema social e de segurança pública. “Primeiro, porque a prevenção começa na família e depois na escola. A maioria dos dependentes químicos não teve a devida orientação em casa e geralmente são oriundos de lares desajustados, sem acompanhamento dos pais e sem uma educação moral e religiosa. Segundo, a droga chega ao jovem porque ela está disponível nas ruas. Se não houvesse a figura do traficante e mais rigor nas fronteiras contra o tráfico e contrabando, e punições exemplares para os chefões do crime e grandes contrabandistas, os insumos para a produção do crack dificilmente estariam disponíveis”, avalia.
O coordenador do Departamento CAO Saúde do Ministério Público de Goiás Marcelo Celestino analisa que o vício em substâncias que causam dependência química é um dos mais graves problemas dos dias atuais e reforça que não se trata apenas de um problema de saúde pública, mas de um problema predominantemente sócio-econômico e de segurança pública. O presidente da AGM e professor emérito da UFG, Joaquim Caetano, considera que, dentre as drogas ilícitas, o crack é atualmente a mais devastadora em vários países com grande desequilíbrio social como é o caso do Brasil, pelo seu baixo custo e pela intensidade do seu tráfico que o poder público não tem conseguido combater de forma efetiva. E ele vai além em sua análise: “O agravo causado ao usuário por esta droga constitui apenas o vértice de uma pirâmide constituída, em suas bases, por componentes sociais como baixa escolaridade, baixa qualificação para o trabalho, o consequente desemprego, na maioria das vezes associados a desajustes, desequilíbrios familiares e perda dos milenares preceitos religiosos”, atesta.
Já o psiquiatra do Centro de Atenção Psicossocial Rondon de Castro analisa que não é somente o crack, mas também outras drogas, e principalmente o álcool, que deviam ser tratados como problema de saúde pública. “O consumo desmedido destas substâncias, além de afetar a vida dos usuários, poderá, de uma forma ou de outra, afetar toda a população. Isso exige uma resposta satisfatória dos governos. O problema do abuso de medicamentos psicotrópicos prescritos por médicos, tais como calmantes e remédios para emagrecer, também deve ser vistos como problema de saúde pública”, enumera.

Prevenção e tratamento
Leonardo Mariano conta que, recentemente viu uma entrevista no Fantástico (Globo) com o médico Dráuzio Varela, na qual ele dizia que a probabilidade de uma pessoa se livrar do vício das drogas é muito pequena, independente da idade. “Todos as tentativas de internação têm se mostrado pouco resolutivas e, mesmo após um período limpo, a chance de recorrência é grande. Conheço várias iniciativas de prevenção e tratamento, seja pela Igreja, pelo poder público, pelo terceiro setor ou por iniciativa particular. Mas o cerne da prevenção está na família, sem a qual todas as outras iniciativas são ineficazes”, pontua.
Para Rui Gilberto, a solução a curto prazo seria a criação de centros públicos de tratamento para os dependentes e suas famílias, já que a esmagadora maioria é pobre e não tem condições de custear um tratamento privado. “Participei de um lançamento de um programa como esse no Palácio das Esmeraldas, mas acredito que ainda não está funcionando. A longo prazo, a solução é a educação, campanhas de informação e uma melhor distribuição de renda, com eliminação dos bolsões de miséria”, acredita.
Joaquim Caetano compartilha esta opinião e diz que, por estar intimamente associado a múltiplos fatores ambientais, o problema de assistência aos usuários de crack deve ser enfrentado como um problema de saúde social e, portanto, de responsabilidade governamental, o único capaz de atuar a partir da base da pirâmide, ou seja, em seus fatores condicionantes. “Todavia, para que o poder público possa atuar de forma efectiva, há necessidade do envolvimento social, em seus vários segmentos, principalmente familiar, fundamental para a formação das pessoas como cidadãos”.

Marcelo Celestino teoriza que é preciso um rigoroso compromisso dos gestores públicos na eficiência do tratamento, que deve incluir a família, bem como retirar o paciente do círculo de convivência comprometido. “A saída requer várias ações, como o rigoroso comprometimento do Poder Público no combate ao tráfico e aos traficantes, com a reordenação do aparelho legal e policial, com maior celeridade dos jujulgamentos dos processos e o rigoroso cumprimento da pena; o aparelhamento da Saúde Pública, para dar tratamento eficiente aos viciados, com aberturas de leitos de internação e remuneração justa; criação de opções de trabalho para os ex-viciados, como forma de prestigiar quem deixou o vício. Estas iniciativas devem partir do poder público em todas as esferas e também da sociedade, pois os resultados atingem todos nós”, elabora.

Salomão endossa a opinião de Marcelo Celestino e acrescenta que é necessário enfrentar o problema de forma decidida, organizada e obedecendo os princípios da Lei 11.343/2006 que institui três frentes: “Primeiro, a prevenção do uso indevido; segundo, a atenção e reinserção social dos usuários e dependentes de drogas; terceiro, a repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas”, enumera, lembrando que não existe no país nenhuma política de prevenção, que deveria ser feita nas áreas de educação, segurança pública, saúde, cultura e emprego. “Hoje, uma professora primária nada sabe sobre drogas e não tem como orientar seus alunos e respectivos pais. Dependência química é uma doença crônica grave e não somente um problema social ou psicológico. A assistência médica aos dependentes inexiste no sistema público de saúde e, infelizmente, só tem tratamento adequado quem pode pagar por ele. A repressão ao tráfico é incipiente”, acrescenta.

Para Salomão, uma forma de enfrentamento ao problema inclui um sistema de tratamento efetivo, hierarquizado e integrado, com vários tipos de locais onde as ações terapêuticas pudessem ocorrer. Ele cita que são necessários tratamentos intensivos e especializados com internações em clínicas especializadas em dependências químicas, em unidade para dependentes químicos em hospital Psiquiátrico, em unidade para dependentes químicos em hospital geral, moradias assistidas para dependentes químicos; tratamentos gerais como relacionados a saúde física, assistência social adequada, orientação profissional; tratamentos sistematizados ambulatoriais como terapias cognitivas, Motivacionais, treinamentos de habilidades sociais, grupos de apoio psicológico e grupos de autoajuda.

No entanto, Rondon de Castro, que, assim como Salomão, lida com usuários de drogas diariamente, assegura que é necessário que as famílias, profissionais e governos criem condições para que essa procura por ajuda seja espontânea. “O usuário precisa confiar nas pessoas e instituições para que os resultados sejam melhores. Há hoje um excesso de internações contra a vontade do usuário provocadas pelo desespero de alguns e oportunismo de outros. Os resultados dessas condutas são quase nulos e, para piorar, o usuário se tornará cada vez mais desconfiado e esquivo, com razão”, alerta.

Rondon diz que, em Goiás, não há nenhum programa que se possa ser qualificado de preventivo relacionado às drogas. Segundo ele, a infinidade de palestras proferidas todos os dias em escolas por pessoas sem formação adequada que se limitam a descrever os “malefícios” provocados pelas drogas ilícitas é uma prática que já foi considerada ineficaz e desaconselhada pela Unesco desde 1970. “Programas preventivos devem ser desenvolvidos por educadores e profissionais com experiência na área, com planejamento, continuidade e compromisso com a avaliação. Não devem ser focados exclusivamente nas drogas e seus efeitos. Há muito que se conversar sobre isso, mas parece que ninguém se interessa”, constata.

Esta é uma das razões pelas quais a AGM decidiu abordar este assunto. E Joaquim Caetano diz que espera, sinceramente, que estas reflexões das entidades médicas e dos profissionais médicos envolvidos e convivendo com este problema possam contribuir para uma efetiva abordagem pelo poder público no sentido de, pelo menos, proporcionar tratamento médico hospitalar para essa crescente massa de adolescentes e jovens em fase aguda de alienação mental. “Quanto ao tráfico, torna -se necessária uma revisão das normas jurídicas, no sentido de uma punição severa e efetiva, principalmente para aqueles que comandam e gerenciam este nefasto procedimento, responsável em boa parte pela crescente violência urbana”, conclui.

Revista da Academia Goiana de Medicina, julho de 2012.

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