terça-feira, 18 de outubro de 2011

A difícil arte de conciliar diferentes funções

Exercer com competência duas atividades profissionais não é nada fácil, ainda mais quando as duas exigem bastante dedicação. Confira o que fazem Ari Queiroz, professor e juiz de Direito e Joveny Sebastião Cândido de Oliveira, professor e tabelião, para conciliar os dois ofícios sem perda da eficiência e eficácia.

Ari Queiroz

Há quanto o senhor exerce a docência e a magistratura?
Este ano completei 20 anos de magistratura e muitas horas de sala de aula; são tantas que, embora no calendário não vá muito além do tempo de atividade forense, talvez equivalha, na prática, quase à minha idade. Explico-me: em geral, os professores lecionam três horas por dia, durante cinco dias por semana, totalizando, em média, quinze horas semanais ou sessenta mensais. Minha carga horária sempre foi bem maior, desde que comecei lecionar, também, em cursos preparatórios para concursos públicos de todos os níveis, inclusive primário. Então, enquanto um dia de aula para os professores em geral representa exatamente um dia, para mim representava em torno de três dias, de modo que vinte e poucos anos de sala de aula equivalem, facilmente, a mais de cinquenta. Afinal, mais de 35 mil alunos já passaram pelas minhas aulas.

As duas funções se complementam?
Claramente, as duas atividades se completam e me apaixonam. Aliás, tenho a resposta pronta para qualquer pessoa que me pergunta se prefiro ser juiz ou professor: “sou bígamo, vivo bem com as duas sem preferir uma à outra e elas se dão muito bem”. Brincadeira à parte, a verdade é que percebo a grande utilidade dessa repartição de atribuições funções pelos dois lados, ao levar para a sala de aula a experiência do dia a dia forense, assim como trazendo para ele a teoria aprendida no meio acadêmico. A docência é altamente eficaz para proporcionar conhecimento, por exigir constante atualização. Por seu turno, o embate forense, a todo instante pondo sobre a mesa petições que vão desde verdadeiras obras de arte, de tão qualificadas, a muitas que não passariam nem na primeira prova do curso de graduação ou de língua portuguesa, fazem o juiz aprender bastante. Afirmo até que o magistério interfere positivamente, inclusive, na produção dos juízes. Basta conferir a produtividade dos que lecionam, inclusive a minha, com a dos demais. Os números falam por si.

Há algum artigo contrário no código de ética da magistratura sobre o exercício simultâneo das duas profissões?
Não exatamente, embora haja certa restrição. Esse problema – que denomino “juiz professor” – tem sido mal estudado e, por isso, mal compreendido. Como sempre fui professor, não foram poucas as vezes que ouvi comentários negativos; de início me preocupava; depois, fui me acostumando e aprendendo a conviver; acreditei no velho ditado: “quem tiver alguma coisa complicada para ser feita, peça para um homem ocupado fazê-la, pois os desocupados nunca têm tempo”. Sempre tive a consciência de não estar fazendo nada de errado. Pelo contrário, sempre entendi estar me preparando, a cada dia, para melhor exercer a magistratura para ser o juiz que a sociedade precisa. A Constituição só autoriza o juiz a exercer o magistério superior; a atual, amenizou a restrição, não mais se referindo ao nível de ensino, podendo o juiz, simplesmente, ser professor. O juiz pode, inclusive, coordenar cursos e dirigir instituições no tocante a questões acadêmicas – veda-se o exercício de atividade administrativa. Também não há restrição – isso deve ficar bem claro – quanto a ser dono ou sócio de colégio, curso ou faculdade, só não podendo exercer a gerência ou administração. Basta ler a Constituição e a Lei Orgânica da Magistratura, onde essa regra está claramente exposta.

Como o senhor consegue tempo para tudo isso?
Na abertura de meu site pessoal – ariqueiroz.com.br – há um texto que escrevi não sei exatamente quando, mas sempre que o leio penso estar atualizado, por isso o reproduzo: “Seja bem-vindo. O caminho para o sucesso é tortuoso e só quem tem disposição para enfrentar as agruras do tempo e intempéries de toda sorte será vencedor. O trabalho honesto acima de tudo, a força de vontade inconteste, a seriedade, o dinamismo e o definitivo não à preguiça e à desorganização são as chaves para vencer a corrida a que muitos se lançam, mas poucos sequer saem dos primeiros passos. Olhe ao seu redor e aos seus círculos de amizades e de colegas de escola e de trabalho e veja que os vencedores não o foram por acaso. Desculpas, como a falta de tempo, por exemplo, a mais comum das justificativas para a falta de fibra, não superam obstáculos. No máximo, servem para satisfazer o sentimento íntimo e transmitir a falsa sensação de só não ter feito mais por não poder. No mercado de trabalho a seleção é natural e os concorrentes não perguntam se você teve ou não teve tempo. Nunca busque justificativas para as falhas. Reflita sobre elas e, se quiser ser um vencedor, corrija-as.”
É isso. Nunca tive tempo; desde os onze anos de idade estudei à noite para trabalhar durante o dia; com 53 anos de idade, tenho mais de 40 de “carteira de trabalho”, dos quais mais da metade acumulando duas ou três atividades. Mas, a falta de tempo nunca foi obstáculo para fazer tudo o que me dispus a fazer, tanto no campo profissional, como fora dele.
Não fiquei apenas na sala de aula; procurei complementar o magistério com a literatura jurídica, e, nessa atividade, escrevi diversos artigos e pelo menos 14 livros, alguns com mais de setecentas páginas; fiz três pós-graduações lato sensu, um mestrado e dois doutorados; passei em outros concursos, dentre eles, em primeiro lugar na magistratura federal, em 1995, quando fazia duas pós-graduações, lecionava em duas faculdades, na escola da magistratura e em dois cursos preparatórios e trabalhava na comarca de Hidrolândia acumulando a de Piracanjuba e auxiliando no apoio na comarca da capital. Não morri. Nem adoeci. Acho até que rejuvenesci. Talvez leve alguma vantagem por não gostar de futebol, nem de bebida alcoólica, e assim me sobra tempo para fazer outras coisas, como pilotar aviões, nadar e correr.


Joveny Sebastião Cândido de Oliveira

Há quanto tempo o senhor exerce a docência e o ofício de tabelião?
Há 45 anos. Iniciei no curso de Direito da Faculdade de Ciências Econômicas de Anápolis e sou dono de um cartório desde 1968.

O que significa lecionar para o senhor?
A expressão lecionar tem um significado especial até porque sou um professor – que não sou melhor e nem pior que ninguém – mas, digamos, que seja um professor diferente dos demais. Eu dedico o melhor que eu posso ao magistério, porque acredito que o magistério é uma missão que escolhe. Não se pode ambicionar, na minha concepção, que no magistério se tenha ganhos elevados, porque os professores não são bem remunerados. Lecionar para mim é um ato diferente, sagrado. Significa empregar muito de si. Graças ao significado da palavra lecionar que me obriga muito e a outros professores que tem esse espírito de professor a se preparar permanentemente. Estar sempre estudando, atualizando-se. Sou bacharel desde 1961. Em 1964 fiz cursos de especializações. Já na década de 80 fiz mestrado e doutorado que concluí na Universidade de São Paulo (USP).
Lecionar é convivência, interação com os alunos. É a busca da transferência não só de conhecimentos na área não só jurídica, como também transferências de princípios éticos, morais com os quais o profissional deve viver por resto de sua vida. Padrões de conduta, de trabalho. Tudo isso faz parte daquilo que se chama lecionar.

De que forma as duas profissões se conciliam?
Sou pai de família, fazendeiro e cultivo atividades esportivas. Evidentemente, a pessoa deve se adequar aos horários. Jamais ninguém me viu em um bar no fim da tarde tomando cerveja com os amigos ou mesmo jogando uma partida de tênis em um clube. Não que essas atividades sejam ruins, mas é que não me sobra tempo. Melhor que bater papo com amigos no bar ou uma partida de tênis, prefiro ler um livro, preparar uma aula ou uma conferência, fazer um curso. Eu consigo fazer tudo que quero: ser um bom pai, ser um chefe de família razoável, um fazendeiro não muito sofrível, consigo ser um professor razoável. Tudo dentro de determinado padrões de conduta, dentro do uso do meu tempo, separando uma atividade da outra e não deixando que nada caia no chão. Às vezes durmo pouco, mas sempre se consegue conciliar as atividades desde que se tenha uma vontade firme de realizar o que efetivamente se planejou.
No cartório, mais de 50% do meu tempo é dedicado a resolver problemas jurídicos das pessoas, problemas patrimoniais, familiares e principalmente de ordem de sucessão hereditária. Esse último é um problema terrível, pois com a mudança do Código Civil em 2002, tive que rever todos os princípios. Na verdade estou no cartório para usar meus conhecimentos e solucionar os problemas das pessoas.
Na universidade a situação não é diferente. Solucionamos problemas dos alunos, dando condições de exercer funções de trabalho. Para quem é da área do Direito como eu, a situação é agradável porque você tem nas mãos meios de ajudar as pessoas a resolver problemas que para elas parecem insolúveis. Consigo coordenar o magistério, a administração universitária, a administração do cartório sem grandes problemas.


Revista da Academia Goiana de Direito, setembro de 2011.

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