sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

A loucura de se viver em Goiânia nos anos 30

Iúri Rincon Godinho

Goiânia, fundada em 1933, era uma cidade impraticável para se viver nos primeiros anos. Em 1930, a prefeitura de Campinas concedia benefícios se a pessoa abatesse apenas um porco para o consumo público. Mais do que isso significava um desperdício, já que a carne se perdia por falta de consumidores. Três anos depois, o expediente da prefeitura parecia brincadeira de escola. Um porteiro, acompanhado do prefeito e de seu secretário, tocava uma sineta na porta da rua. Se não aparecesse ninguém, encerrava-se o expediente até o dia seguinte. A regra não valia para sábado, domingo ou feriado, quando não funcionava nem havia plantão. A cada dois anos alguém pedia um alvará para construir uma casa em Campinas. Seis funcionários davam conta de todo o trabalho na administração do município.

Na Goiânia de 1935, qualquer um poderia abater e vender carne, sem qualquer fiscalização de saúde. Dois ranchos de capim na Rua 4 com a 24, faziam às vezes de feira. No ano de 1933, o comércio se resumia a armazéns dispersos, que vendiam bens de primeira necessidade, como cereais, sal, açúcar, farinha e serragem. Quem desejasse comprar produtos melhores tinha de procurar as lojas de Campinas.

A princípio só existia um piano na cidade, do secretário geral do Estado, Benjamin da Luz Vieira. Arremedos de estrada serviam mais para mostrar o caminho entre as cidades do que para o transporte. Só passavam cavalos e carros de bois. Isso na seca, pois os atoleiros quebravam as pernas dos animais. Nos rios, as toscas pontes de madeira, muito perto da água, só serviam se não chovesse.
Para se chegar à capital, vindo de Anápolis, a distância era de 80 quilômetros, contra os 50 atuais. A volta tinha de ser dada passando por Inhumas. Para abrir novos caminhos, o equipamento mais utilizado era a mão humana, com facões e picaretas.

Se estrada não existia, asfalto também não. Quem quisesse ir a São Paulo só ia encontrar o “chão preto” em Campinas, a 100 quilômetros da capital paulista. Até o início da década de 40 não havia táxi — ou carro-de-praça — na capital. Se circulassem pelas ruas teriam problemas, pois até as principais avenidas estavam apenas esboçadas e a falta referências visuais (meio-fios e residências — afinal, elas eram poucas e espalhadas) dificultavam o trânsito, em especial nos cruzamentos. As crianças se arriscavam ao atropelamento ao pegar carona na traseira dos pequenos ônibus que ligavam Goiânia a Campinas. Chamada pelos ricos de jardineira e pelos pobres de rabuda, sacolejavam em ruas de terra e buracos e se equilibrar do lado de fora virou um dos maiores riscos à vida na nova capital.

Provinciana como a Cidade de Goiás mas com um inegável espírito de grandeza, Goiânia chegava a ser engraçada. Qualquer pessoa que chegasse de avião ou se hospedasse no Grande Hotel tinha o nome automaticamente publicado no jornal O Popular. Goiânia era um não haver de coisas. Não havia igrejas, rezava-se em casa. Não havia clubes ou salões de festas, as reuniões festivas aconteceiam debaixo de uma árvore — a amoreira da Rua 24 de Outubro, considerada o primeiro “palácio” da capital. Mão-de-obra era difícilima de encontrar. Faltavam encanadores e eletricistas, por exemplo.

O advogado José Crispim Borges, chefe do serviço de Estatística da prefeitura, contou que este tipo de profissional era tão importante, que quando alguns alemães chegaram a Goiânia com experiência em construção, foram recebidos em palácio por Pedro Ludovico. “E teve até discurso”, lembrou Crispim.
A empresa Coimbra Bueno, que tocava as obras na capital, fez um relatório para a Secretaria da Fazenda em junho de 1936 que, apesar de cheia de adjetivos ufanistas, dava uma ideia do que era viver na cidade. Apenas uma pequena parte tinha água, que passava pelo filtro de um reservatório de 70 metros quadrados, do tamanho de um apartamento de dois quartos.

A partir daí o abastecimento ficava ainda mais precário: poços — as famosas cisternas — ou a captação direta do córrego Botafogo, um dos motivos pelos quais as casas dos operários da construção ficaram às margens do Córrego Botafogo. No entanto, a pioneira Armênia Souza, que chegou em 4 de maio de 1936, afirmava que a água do Botafogo, apesar de limpa, tinha um gosto ruim. Tomava-se banho nos córregos e, nas casas, em bacias, mas com um luxo: a água podia ser aquecida em fogões de lenha.

Segundo o mesmo relatório da Coimbra Bueno, não existia asfalto, mas apenas poucos trechos encascalhados. No último parágrafo deste documento, a empresa Coimbra Bueno jogou a toalha: “Goiânia tem nos custado um esforço supremo”. Situação pior viviam os trabalhadores. A maioria veio de fora, de Minas, São Paulo e Bahia. Queriam fazer a vida na nova cidade, mas encontraram um sistema de trabalho pesado, que não respeitava finais de semana nem feriados. Horários, muito menos. E eles não recebiam em dia. Entravam nos vales, se valiam de agiotas e conseguiam jogar a pobreza para o próximo mês. Viviam em ranchos de palha. Os de condição menos miserável em casas de tábuas. Nas duas a água entrava durante as chuvas. A comida cozinhava-se na lenha, em espaços improvisados no chão ou fogueiras. A fumaça ardia nos olhos. Até a construção, em 1936, de uma cantina na Rua 19, frutas, verduras e leite eram artigos de luxo, mandados buscar — quando haviam — no longínquo bairro de Campinas.

Estas condições faziam com que os operários que conseguissem voltar para suas origens espalhassem os maiores horrores sobre a cidade, em posição oposta à propaganda oficial, onde tudo exalava progresso e bem-estar. O aperto dos funcionários foi insignificante frente ao holocausto da fauna e da flora da área em construção. O ritmo das obras impôs aos proprietários das madeireiras e serrarias um processo intenso de extração de madeira. Vigas, caibros, esquadrias e móveis saíam da vegetação nativa do cerrado. A natureza ainda sofria com a brutal extração de lenha para abastecer os fogões, esquentar a água do banho, manter funcionando as panificadoras, olarias e cerâmicas.

Brito Broa, que escrevia na revista Cultura Política, do Rio de Janeiro — e veio para o Batismo Cultural em 1942 — não perdoou aquele local sem qualidade de vida. “Reclama-se também muito contra a terra vermelha, essas nuvens de pó que, erguidas a todo momento pelos veículos, deixam em estado lastimável a roupa de casemira e tornam impossível o uso de terno branco. De fato, com exceção de duas ou três avenidas, o resto da cidade ainda não tem calçamento”. Ele ainda conta das ruas traçadas de maneira indefinível, sem se saber onde começavam ou acabavam. “Vi um companheiro de viagem, incapax de refletir dois minutos, exclamar cheio de má vontade: mas isso é a tal cidade?”

Em 1943, o geógrafo francês Pierre Monbeig descrevia a cidade: “Longe dos grandes centros do litoral, sem ligação ferroviária direta, com estradas bastante medíocres, em uma região que há cerca de dois séculos vive vagarosamente.” Um ano depois o o coronel Lima Figeuiredo, funcionário federal do Ministério da Guerra, escrevia: “Os dias são quentes e as noites frias, caindo mesmo a temperaturas abaixo de zero nos meses de junho e julho”. Relatara, sem querer, um clima de deserto.

O advogado e deputado José Júlio Guimarães Lima, por sua vez, enxergou um mundo atrasado e sujo quando chegou na capital pela primeira vez. A viagem longa, de trem — ele veio de Belo Horizonte —, extremamente desagradável, o deixou com uma “imagem de demônio”. Olhos vermelhos pela fumaça, a cara uma “nódoa do pó de carvão”. O paletó ficara crivado de furos das fagulhas incandescentes da locomotiva. Quando pensou que o calvário chegara ao fim, ao entrar no Grande Hotel — “que, por exclusão, era o único” — não pode tomar banho por falta d ´água. “Estourou um cano, só amanhã”, contemporizou o gerente. Dias depois, ao passear pela cidade, à cavalo, “voltava confetizado de carrapatos”.

Quem morava na cidade em construção enfrentava além dos carrapatos, nuvens de muriçocas. Isso mesmo. Literalmente nuvens a um metro e meio do chão, que nos finais de tarde ficavam quase invisíveis pela penumbra até se entrar dentro delas. Aranhas e formigas viviam harmoniosamente nas casas e ranchos. Grilos e sapos também. Com o material de construção aumentou o número de escorpiões que, de tão comuns, não amedrontavam e chegavam a ser caçados e exibidos em potes de vidro pelas crianças.

Com o tempo e a falta de saneamento básico, a cidade virou habitat de baratas e ratos. À noite apareciam ainda coelhos, gatos selvagens, pequenos macacos e tatús, acompanhados de outro bichos mais sinistros, como lacraias e aranhas-caranguejeiras. Melhor para o vigia do Grande Hotel, que fazia churrascos no fundo da construção, com os coelhos e tatús que encontrava aos montes. Eram tantos que ele passou a convidar amigos e vizinhos para o jantar.

À noite se ouvia em Goiânia o som da selva. Todos tinham histórias para contar sobre o avistamento de cobras. O cerrado, a natureza, a selva imperavam. Mas não era de todo ruim e podia ser até divertido. Os rios da cidade tinham uma população considerável de jacarés e volta e meia eles apareciam na porta das casas. Se estivessem pequenos, colocavam  por um tempo nos quintais para as crianças brincarem. Se fossem maiores, morriam ali mesmo, a pauladas.

Se chovesse, nem precisava fazer previsão: a luz ia faltar. Isso depois que ela chegasse, pois nos primeiros tempos a única claridade noturna advinha de velas, lampeões e da lua. Quando o governo do Estado acertou a construção da represa do Jaó, só havia eletricidade das 6 às 10 da noite. Na inauguração do Grande Hotel, por exemplo, símbolo da modernidade da nova capital, a energia acabou no meio de um dos discursos, deixando todos completamente às escuras e mudos.

Pior foi quando a usina do Jaó rodou com uma enchente em 1945 e toda a capital passou a viver à base de lampião, vela e lanterna. A pianista Belkiss Spencière se dava bem com a falta de energia. Se estivesse se apresentando em um recital e a luz apagasse, ela nem se importava. Sabia que alguém acenderia a lanterna e o espetáculo continuaria. Pior para o seu marido, o médico Simão Carneiro de Mendonça, que viu diversas vezes a energia ir embora no meio da operação, com o paciente “aberto” na mesa cirúrgica da Santa Casa de Misericórdia, bem em frente à sua residência na Avenida Tocantins. O casal Simão e Belkiss tinha um método infalível para fazer o filho Bruno dormir. Levavam o garoto para passear de carro — e balançar nas ruas sem asfalto — no lugar mais longe que conheciam, o futuro Setor Marista.

Quem chegava de fora logo ganhava um rótulo: pau-mandado, já que todos procuravam Goiânia para trabalhar e teriam chefes — o pau. Como chegavam aos montes, não dava para saber se o pau era do bem ou do mal. Jorge Ederly foi um dos que veio para uma tarefa insólita: procurar água. Usava um prosaico arame para identificar o lençol freático. Óbvio, não deu certo. Diz o jornalista Eliézer Pena, ex-editor do jornal O Popular e que mora na cidade desde 18 de junho de 1949, que Jorge Ederly recebeu um adiantamento e nunca mais foi encontrado.

Não se podia culpar quem não quisesse viver naquela capital tosca e perigosa. As tempestades da estação chuvosa eram capazes de inclinar até veículos pesados, como os caminhões da construção. Destelhavam casas, derrubavam paredes, desequilibravam as pessoas. Raios despencavam em todas as direções e não raro atingiam prédios públicos e residências. Com cada vez menos árvores, foi até natural quando um deles caiu na obra do tenente Getulino Artiaga, em 30 de maio de 1935. Três pessoas ficaram feridas.

Chovia tanto que muitos operários realizavam uma espécie de dança da chuva ao contrário, para fazer parar o aguaceiro. Colocavam o calcanhar na terra afofada pelas águas e giravam sobre ele, marcando o chão com um círculo fundo. Isso, acreditavam, tinha o poder de pelo menos diminuir a quantidade de água que caía. A pioneira Armênia Souza faz um relato aterrador dos redemoinhos, que disputavam com as tempestades o que causava mais estragos: “E vinha o vento, disfarçado, humilde e começava a rodopiar por ali e ia levantando a poeira, ia se enovelando e cada vez mais tomando força e ímpeto; e já era um canudo vermelho de pó, que subia tão alto, a se perder de vista. E, com a força que adquiria, começava a levantar folhas, papéis, galhos secos, e por fim já era uma ameça terrível para as pessoas que inadvertidamente se colocassem em seu caminho. Ai de quem cruzasse sua rota: era arrastado, rodopiado num turbilhão de poeira, e se dele conseguia se desvencilhar, estava com os olhos e os ouvidos cheios de pó e, não poucas vezes, com alguma contusão, pois era lançado de encontro aos muros ou cercas de arame farpado.”

O povo inventou até uma simpatia para afastar esses pés-de-vento. Quando eles começavam a se formar, logo repetiam: “Aqui tem Maria, aqui tem Maria”. Diziam ser um método infalível.
Quem se ferisse com os raios, os redemoinhos ou ficasse doente tinha de se virar sozinhos, pois só havia, nos anos 30, Domingos Viggiano como médico, apesar de Campinas ter um centro de saúde, pequeno, dirigido por Laurindo de Carvalho.

Às vésperas do Batismo Cultural, em 1942, as obras da capital passaram a atrasar. Um surto de malária se espalhou entre os operários. O médico Aldemar de Andrade Câmara foi chamado pelo interventor Pedro Ludovico para descobrir o foco da doença. No prédio da Escola Técnica Federal, que sediaria a Exposição de Goiânia no Batismo Cultural, havia dias em que os trabalhadores diminuíam de 200 para 30. Todos com malária. Aldemar descobriu os mosquitos num ponto do Rio Meia-Ponte, de onde se extraía a areia para as obras.

O antropólogo francês Claude-Levi Strauss esteve na cidade em 1935 e 36, quando Venerando iniciava na prefeitura. E pintou um quadro triste e selvagem do que encontrou. Melhor dizendo, não deixou pedra sobre pedra, sem poupar a Cidade de Goiás e a nova capital, que ocupam cerca de quatro páginas de seu livro Tristes Trópicos. Pela importância do autor e do texto, segue uma tradução livre da paisagem de terror pintada por ele:
“A pequena capital do Estado de Goiás, que lhe deu o nome, dormia a mil quilômetros do litoral, da qual se encontrava praticamente incomunicável. Em um lugar agonizante, dominado pela silhueta caprichosa dos morros cheios de palmas, ruas de casas baixas desciam entre os jardins e as praças onde os cavalos transitavam ante as igrejas de janelas decoradas. Colunas, estuques, fachadas recém castigadas pelo pincel com uma cor espumosa como clara de ovo e repletas de bege, de marrom, de azul ou de rosa, evocavam o estilo barroco das paisagens ibéricas. Um rio deslizava entre um dique cheio de musgo, às vezes esmagados sob o peso de cipós das bananeiras que haviam invadido as casas abandonadas; estas não pareciam marcadas com o signo da decrepitude: essa vegetação sinuosa agregava uma dignidade muda a suas fachadas deterioradas.

“Não há que se deplorar ou regojizar-se com o absurdo: o governo decidira esquecer a Cidade de Goiás, seus campos, seus contornos e sua graça passada de moda. Tudo era demasiado pequeno, demasiado velho. Precisava-se de uma tábua rasa para fundar o gigantesco empreendimento com que sonhavam. “Encontraram (o local para Goiânia) a 100 quilômetros de distância, na forma de um lugar aberto só por pasto duro e árvores espinhosas, como atacadas por uma praga que houvesse destruído toda fauna e toda vegetação. Nenhuma estação ferroviária, nenhum caminho conduzia a ela, sem nem mesmo estradas adequadas para os carros.

Traçou-se em um mapa um quadrado simbólico de 100 quilômetros de lado, correspondente a este território, sede do governo, em cujo centro se levantaria a futura capital. Como não havia ali nenhum acidente natural que importunasse os arquitetos, estes puderam trabalhar em um lugar plano. O traçado da cidade se desenhou no solo; o contorno foi delimitado e dentro dele se marcou as diferentes zonas: residencial, administrativa, comercial, industrial e a reservada ao lazer...

“Da manhã à noite os diários se encheram de anúncios que ocupavam páginas inteiras. Anunciava-se a fundação da cidade de Goiânia em torno de um plano detalhado, como se a cidade fosse centenária, enumerando-se as vantagens que prometiam aos habitantes: estação ferroviária, abastecimento de água, esgotos e cinemas... Pois os advogados e os especuladores eram os primeiros ocupantes (da cidade).

“Visitei Goiânia em 1937. Uma planície sem fim com algo de terreno baldio e de campo de batalha, arrepiada de postes elétricos e de casas — via-se umas 100 casas novas dispersas em todas as direções. O mais importante era um hotel, paralelepípedo de cimento que, no meio de semelhante planície, parecia um areroporto ou um forte. De bom grado podia-se aplicar a expressão ´baluarte da civilização´ em um sentido não figurado mas direto, que assim empregado tomava um valor singularmente irônico, pois nada podia ser tão bárbaro, tão inumano como esse hotel no deserto. Essa construção sem graça era o contrário de Goiás; nenhuma história, nenhum tempo, nenhum costume havia costurado seu vazio ou suavizado sua dureza; a pessoa se sentia ali como em uma estação ou em um hospital, sempre passageiro, sempre viajante. Só o temor a uma catástrofe poderia justificar essa casamata...

“A lembrança do Grande Hotel de Goiânia se une a outras em minha memória, testemunha — nos dois lados, do luxo e da miséria — do absurdo das relações que o homem aceita entabular com o mundo, ou melhor, que de maneira crescente lhe são impostas.”

Um comentário:

  1. Ainda existem lugares proximo a Goiania que ainda estao nas condicoes de quando Goiania era uma cidade jovem. Quando mudei para a Aparecida de Goinia no final dos anos 80 num bairro pobre tudo era horrivele acredite naquela epoca tambem ja tinha roubos no bairro. Ainda bem que nao moro mais la'! Obrigada meu Deus!

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